2 de abr. de 2010

Há ocasiões em que palavras não servem de nada

"Ou então, certas coisas o melhor é deixá-las sem explicação, dizer simplesmente o que aconteceu, não interrogar o íntimo das pessoas, como foi daquela vez que a mulher do médico tinha saído da cama para ir aconchegar o rapazinho estrábico que se havia destapado. Não se deitou logo. Encostada à parede do fundo, no espaço estreito entre as duas fileiras de catres, olhava desesperada a porta no outro extremo, aquela por onde tinham entrado num dia que já parecia distante e que não levava agora a parte alguma. Assim estava quando viu o marido levantar-se e, de olhos fixos, como um sonâmbulo, dirigir-se à cama da rapariga dos óculos escuros. Não fez um gesto para o deter. De pé, sem se mexer, viu como ele levantava as cobertas e depois se deitava ao lado dela, como a rapariga despertou e o recebeu sem protesto, como as duas bocas se buscaram e encontraram, e depois o que tinha de suceder sucedeu, o prazer de um, o prazer do outro, o prazer de ambos, os murmúrios abafados, ela disse, Ó senhor doutor, e estas palavras podiam ter sido ridículas e não o foram, ele disse, Desculpa, não sei o que me deu, de facto tínhamos razão, como poderíamos nós, que apenas vemos, saber o que nem ele sabe. Deitados no catre estreito, não podiam imaginar que estavam a ser observados, o médico de certo que sim, subitamente inquieto, estaria dormindo a mulher, perguntou-se, andaria aí pelos corredores como todas as noites, fez um movimento para voltar à sua cama, mas uma voz disse, Não te levantes, e uma mão pousou-se no seu peito com a leveza de um pássaro, ele ia falar, talvez repetir que não sabia o que lhe tinha dado, mas a voz disse, Se não disseres nada compreenderei melhor. A rapariga dos óculos escuros começou a chorar, Que infelizes nós somos, murmurava, e depois, Eu também quis, eu também quis, o senhor doutor não tem culpa, Cala-te, disse suavemente a mulher do médico, calemo-nos todos, há ocasiões em que as palavras não servem de nada, quem me dera a mim poder também chorar, dizer tudo com lágrimas, não ter de falar para ser entendida. Sentou-se na borda da cama, estendeu o braço por cima dos dois corpos, como para cingi-los no mesmo amplexo, e, inclinando-se toda para a rapariga dos óculos escuros, murmurou-lhe baixinho ao ouvido, Eu vejo". (Um pedacinho de Ensaio Sobre a Cegueira, de Saramago)

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.

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